Cemitérios e milagreiros revelam memória de cidades no Seridó potiguar

30 de outubro de 2014

Agecom/UFRN:

“Este é o meu parque de diversões”, diz Lourival Andrade Júnior enquanto circula com familiaridade entre os túmulos do Cemitério São Vicente de Paula, em Caicó. Professor de História do Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES) – unidade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) –, Lourival encontra com facilidade as sepulturas do local, sobre as quais é capaz de comentar desde os aspectos artísticos do jazigo até as histórias familiares das pessoas enterradas ali. “Este espaço é um documento vivo. Aqui eu me sinto bem. Não digo religiosamente, mas do ponto de vista da pesquisa. Me sinto melhor aqui do que em um arquivo, com aquele cheiro que me dá até rinite”.

O docente lidera no CERES o estudo Cemitérios do Seridó, que pretende reconhecer a memória das cidades da região pelas características de seus cemitérios. “Fazemos uma análise social, uma leitura. Procuramos a sensibilidade do lugar”, explica.

Estudo identifica diferenças sociais nos cemitérios do Seridó. (Fotos da matéria: Anastácia Vaz)

Estudo identifica diferenças sociais nos cemitérios do Seridó. (Fotos da matéria: Anastácia Vaz)

Lourival acredita que as sepulturas eternizam as pessoas, preservam memórias que uma pesquisa não encontraria em fontes consideradas convencionais pelos historiadores, como os processos criminais ou os atestados de óbito. O professor já esteve em todos os cemitérios da região, composta por 23 municípios, e guarda um banco de dados com mais de 6 mil fotos de tumbas. O que mais lhe chama atenção, é que, em todos os locais visitados, é possível perceber claramente as diferenças sociais.

“O Seridó demarca muito bem o espaço social de poder dentro do cemitério. Quem manda e quem não manda, tudo está aqui. As famílias mais poderosas têm túmulos mais suntuosos, as menos abastadas têm covas rasas, simples, mais baratas”, analisa. “As pessoas dizem que o bom da morte é que ela iguala todos. Como assim? Este aqui é igual àquele lá?”, provoca, apontando para uma sepulcro azul, alto e imponente, em formato de torre gótica, e depois para um jazigo vizinho, ao nível do chão, modestamente decorado com pequenas plantas.

“O cemitério é a representação da cidade: dos seus poderes, da sua cultura, da sua sociedade e da sua economia”, continua. “É a memória viva. Lembro sempre a meus alunos: quem constrói o túmulo não é o morto, mas os vivos. Eles reproduzem na obra tumular o que o morto tinha. É a única forma, em muitos casos, da manutenção da memória desse sujeito”, avalia.

Professor Lourival Andrade Júnior já esteve em todos os cemitérios do Seridó.

Professor Lourival Andrade Júnior já esteve em todos os cemitérios do Seridó.

Milagreiros

Outra peculiaridade dos cemitérios do Seridó, segundo Lourival, é a grande quantidade de milagreiros mortos, pelos quais as pessoas criam devoção e aos quais creditam realizações sobrenaturais. O mais famoso deles, relata o docente, é Dr. Carlindo Dantas, médico e deputado estadual assassinado em 1967, que atrai anualmente milhares de devotos a sua sepultura no Cemitério Campo Jorge, em Caicó, em busca de cura para problemas de saúde.

Quando vivo, Carlindo Dantas era conhecido como médico dos pobres. Histórias suas narravam atendimentos espetaculares, a exemplo de um parto em que teria usado os faróis de seu carro para iluminar o interior de uma casa de taipa, sem luz elétrica, através de um buraco que ele mesmo havia aberto na parede. Depois, segundo se conta, o deputado caicoense ainda enviava roupas e alimentos à família necessitada.

O político foi acusado de encomendar a morte de um outro médico da região, Onaldo Queiroz, o que lhe fez ser preso e, depois, liberto por falta de provas. Solto, anunciou em uma entrevista na rádio local que provaria quem eram os verdadeiros assassinos de Onaldo. No mesmo dia, foi morto a tiros, na entrada de um tradicional clube da cidade.

Sepulturas eternizam pessoas e preservam memórias.

Sepulturas eternizam pessoas e preservam memórias.

Um estudo conduzido no CERES investiga especificamente o fenômeno dos milagreiros, intitulado Crime e Devoção, igualmente coordenado por Lourival Andrade Júnior. “Em 1967 houve muitos homicídios em Caicó. Porque só Carlindo Dantas se tornou um morto especial? A gente reconstitui o universo desse sujeito para entender como o povo o nomeia um milagreiro de cemitério”, esclarece.

Um dos fatores avaliados pela pesquisa é a morte trágica. “É o reviver do martírio, da tragédia cristã. A morte trágica purga os pecados do vivo. Quanto mais sofrida a morte, maior a possibilidade de se tornar um milagreiro”, aponta o professor. A diversidade de crenças religiosas e a flexibilidade das pessoas em relação ao sagrado também são identificados como fatores que colaboram para o surgimento das devoções.

Lourival defende a importância de se analisar a relação das pessoas com o sagrado, de interpretá-las a partir de suas crenças. “Entender os milagreiros é fazer a composição cultural de um povo. Entre todas as coisas, aquilo que mais movimenta a humanidade é a cultura. Não é a economia, não é a política, mas a cultura, que é mais permanente, mais difícil de ser mudada”, avalia. “A religiosidade é um dos aspectos mais específicos da cultura. Compreender esses espaços de devoção, tanto católicos tradicionais quanto católicos populares, como a gente chama, é fundamental para entender a sociedade”, analisa.

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