No RN, esquema de desvio dos precatórios do Tribunal de Justiça começa a ser desvendado

30 de março de 2012

PIVÔ DO ESCÂNDALO dos precatórios no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, Carla Ubarana usou o tempo ocioso na prisão para ocupar a mente. Autora de um livro de auto-ajuda onde relata, entre outras coisas, experiências de viagens à Europa, a ex-chefe da divisão de precatórios do TJ será mais ousada na segunda obra. Não é exagero dizer que Ubarana tem em mãos um best-seller. Se de ficção ou realidade, é a Justiça quem vai dizer.

Na cadeia, Carla escreveu um diá-rio contando sua versão, com detalhes, de como o maior esquema de corrupção da história do TJ foi armado. Segundo ela, tudo aconteceu com a conivência de desembargadores e juízes.

O NOVO JORNAL teve acesso aos escritos de Carla Ubarana e revela o conteúdo legível do texto. Dos nomes envolvidos ao modus operandi do crime. Além das anotações pessoais, o diário também traz troca de correspondências entre ela e o marido na cadeia. Essa é a versão da principal suspeita, para o Ministério Público, de liderar uma quadrilha que desviava dinheiro público no Tribunal. Irônicamente, cabe agora à Justiça dizer quem fala a verdade nessa história.

Em um texto com vários erros de português, a ex-chefe da divisão de precatórios do TJ dá o nome dos desembargadores Osvaldo Cruz, Rafael Godeiro e Judite Nunes como sendo os que sabiam do esquema e dividiam a verba que deveria ser paga aos beneficiários dos precatórios. “Os desembargadores envolvidos citar nome: Oswaldo, Rafael e Judite Nunes”, escreveu.

Numa das páginas ela conta a forma dos pagamentos aos magistrados. “Osvaldo pagamento com cheque, Rafael pagamento com guias e Judite pagamento com guias”, citou.

Os três presidiram o Tribunal durante o tempo em que Ubarana dirigiu o setor de precatórios da instituição. Carla chei ou a divisão de 2007 a janeiro de 2012, quando foi exonerada sob suspeita de corrupção. Servidora efetiva do TJ, ela foi nomeada pelo desembargador e então presidente do Tribunal, Osvaldo Cruz, e mantida pelos sucessores Rafael Godeiro e Judite Nunes.

Hoje, a partir das 8h30, Carla Ubarana e o marido, o empresário George Leal, serão ouvidos pelo juiz da 7ª Vara Criminal, José Armando Pontes. Essa é a primeira vez que o casal vai falar em juízo. Semana passada, Carla fez um acordo com o Ministério Público se comprometendo a colaborar com as investigações desde que tivesse direito ao benefício da dela-ção premiada.

A casa de Petrópolis, onde o casal cumpre prisão domiciliar, é um dos bens listados por Carla em carta ao marido, George, na prisão

A casa de Petrópolis, onde o casal cumpre prisão domiciliar, é um dos bens listados por Carla em carta ao marido, George, na prisão. (foto: Alex Régis)

A expectativa é para saber se ela irá reiterar todo o conteúdo presente nos manuscritos da prisão, além do que foi revelado aos promotores de justiça do Patrimônio Público. Desde que aceitou colaborar, Carla e George estão em prisão domiciliar, na casa onde moram com os filhos, em Petrópolis.

ESQUEMA PODE TER DESVIADO MAIS DE R$ 70 MILHÕES

O maior esquema de corrupção da história do Tribunal de Justiça pode ter desviado mais de R$ 70 milhões do setor de precatórios.

Essa era uma estimativa inicial da comissão administrativa presidida pelo desembargador Caio Alencar que investiga o escândalo internamente. A comissão foi designada pela atual presidente Judite Nunes depois de ter descoberto indícios de irregularidades no setor. O primeiro relatório confirmou o desvio e a presidente do TJ encaminhou-o para o Ministério Público e para o Conselho Nacional de Justiça, além de ter solicitado ao Tribunal de Contas uma auditoria no setor, atualmente em andamento.

O valor de R$ 70 milhões foi estimado por uma fonte ligada ao grupo. No primeiro relatório, elaborado ainda em janeiro deste ano, a comissão detectou desvio superior a R$ 4 milhões.

Na prisão, Carla teria planejado em detalhes estratégia de defesa.

Na prisão, Carla teria planejado em detalhes estratégia de defesa. (Foto: Fábio Cortez/DN/D.A Press)

O rombo constatado estava relacionado a apenas quatro processos. Na próxima semana, um segundo relatório será entregue ao CNJ. Provocado, o Ministério Público também investiga o caso. Depois de analisar o primeiro relatório da comissão interna, os promotores do Patrimônio Público del agraram dia 31 de janeiro a operação Judas, referência à traição que ocorreu dentro da instituição.

Seis mandados de prisão foram cumpridos. Além de Carla Ubarana e George Leal, foram presos a ex-secretária de Carla Ubarana e ex-professora do Marista, Cláudia Sueli Silva Oliveira Costa, única que conseguiu habeas corpus, e os amigos de infância de Carlos Eduardo Cabral Palhares e Carlos Alberto Fasanaro Júnior seguem na cadeia. Os três são acusados de atuarem como laranjas no esquema.

Segundo a denúncia apresentada pelo MP, o crime acontecia através da duplicação de guias e pagamentos de valores para pessoas que não tinham nada a ver com os processos.

Há indícios também de que as planilhas de correção dos valores dos precatórios eram superfaturadas. O NOVO JORNAL revelou na edição de domingo passado que as declarações de Imposto de Renda do casal não batem com as movimentações financeiras.

ESCRITOS FALAM SOBRE A DIVISÃO DO DINHEIRO

Nos manuscritos, Carla Ubarana fala sobre a participação dos magistrados e comenta a divisão do dinheiro. Segundo ela, o ex-presidente do TJ, Osvaldo Cruz, assinava os cheques. “O presidente Osvaldo assinava o cheque, nós depositávamos em nossa conta, sacava e depois dividia. Os valores foram crescentes até porque chegou dinheiro de RPV (Requisição de Pequeno Valor) e muito dinheiro sem dono”, disse.

Em outro trecho, ela diz que o desembargador Rafael Godeiro não queria nem saber quem eram os benei ciados dos precatórios. “(o juiz) Luiz Alberto (Dantas) mandou voltar o processo no intuito de atrasar e Rafael Godeiro, ciente de como funcionava, recebia o dele em mãos após sacar em guias, todas assinadas por Rafael Godeiro e por (trecho ilegível). Não queriam nem saber quem seria beneficiado, o que importava era o fim, como ao banco só interessava o beneficiário”, escreveu.

Sobre a desembargadora e atual presidente do TJ, Judite Nunes, a ex-chefe dos precatórios a acusa de omissão. “Houve omissão de Judite nas guias que ela mandava assinar em branco para ‘quando’ fosse necessário”, ai rma antes de chamar Judite de negligente. “Negligente quanto aos 12 processos do TRT. Um ano se passou e ela nunca atendeu o presidente para lhe dar respostas ou tomar providências com relação aos (ilegível) do TRT”, disse.

Além da participação do trio de ex-presidentes, Ubarana também envolve parentes de outros desembargadores. Numa das páginas ela escreveu que ‘esposo da desembargadora Zeneide (Bezerra) solicita pagamento do mesmo precatório 2 x”, citou. Em outra passagem do manuscrito, Ubarana também explicou o modus operandi da fraude. “O que fazíamos era comprar e vender. Em janeiro, eu sabia que o dinheiro do estado ia começar em junho, então, seguindo a ordem cronológica, por exemplo, o primeiro valia R$ 140 mil, oferecíamos por este, em janeiro, R$ 40 mil e em julho a planilha normal de 140. 100 seria o ganho líquido”, afirma.

No relato que fez enquanto passou 28 dias na ala feminina da penitenciária João Chaves, Carla Ubarana também revela, mesmo sem citar nomes, que juizes mandavam o mesmo precatório duas e três vezes para pagar. Um advogado também cobrava duas vezes o mesmo (precatório) e coni rmava que não tinha recebido. Em relação à quebra da ordem cronológica de pagamento dos precatórios,a ex-chefe do setor mostra as falhas do sistema. Ela conta que juízes pagavam no interior sem observar a ordem. E arremata: “Presidentes foram informados”.

FUNCIONÁRIA NÃO USAVA COMPUTADORES DO TRIBUNAL

Carla de Paiva Ubarana Araújo Leal chegou o setor de precatórios do Tribunal de Justiça de 2007 até 10 de janeiro de 2012, quando foi exonerada pela presidente do TJ, Judite Nunes, sob suspeita de fraude. Fechada, a servidora tinha um perfil centralizador. Nem os assessores dos gabinetes dos juízes e desembargadores tinham acesso aos processos. Ela controlava tudo relativo aos precatórios. Prova disso é que Ubarana não usava os computadores do TJ para trabalhar nos processos. Ela trazia um notebook de casa e, todos os dias, levava e trazia os precatórios de casa para o trabalho.

Carla era o contato do TJ junto ao Banco do Brasil e até intermediava negociações de precatórios com o Governo do Estado, uma atribuição que não tem relação com a função que desempenhava. A acusada é funcionária de carreira do Tribunal e casada com o empresário George Leal. A ex-chefe do setor de precatórios é enteada do desembargador aposentado do TJ, Ivan Meira Lima, mas assumiu a cheia do setor de precatórios do TJ em 2007 por indicação do desembargador Osvaldo Cruz, o mesmo citado por ela nos manuscritos divulgados pelo NOVO JORNAL como um dos desembargadores beneficiados pelo esquema.

Ubarana permaneceu também nas gestões de Rafael Godeiro e da atual presidente, Judite Nunes. Quando Rafael Godeiro exonerou três irmãos de Ubarana que trabalhavam no TJ – dois efetivos perderam apenas as gratificações e o outro que não era funcionário de carreira perdeu o emprego – Osvaldo Cruz intercedeu e conseguiu que ela permanecesse no setor.

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