Do Riograndedonorte.net com informações da Agecom/UFRN:
Não é necessária muita conversa para reparar no entusiasmo com que José Henrique Fernandez fala do continente mais frio do planeta. O professor da Escola de Ciências e Tecnologia (ECT) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) enumera fatos históricos, dados numéricos e aspectos da paisagem do lugar com a espontaneidade de quem fala coisas triviais. Natural para alguém que por quinze vezes já esteve no Polo Sul, duas delas após chegar à UFRN, em 2010.
“Eu estava na graduação, em São Paulo, e conheci uma pesquisadora que trabalhava com a física da alta atmosfera terrestre”, lembra José Henrique, sobre como começou sua série de viagens. “Resolvi fazer iniciação científica na área e ela me falou: ‘temos um grupo que vai para a Antártica e, como você tem se dado bem nas pesquisas, vou lhe botar para fazer parte da expedição’. O sorriso foi de orelha a orelha”, rememora.
De modo divertido, seu colega de ECT e meteorologista David Mendes conta que – segundo anedota que circula entre os docentes, longe da Antártica -, José Henrique estaria fora de seu habitat natural. David nunca foi ao Continente Branco, mas deve ser o próximo professor da UFRN a percorrer os milhares de quilômetros e enfrentar as longas horas de vôo em avião da Força Aérea Brasileira para desenvolver investigações no local.
No último mês de dezembro, o cientista obteve financiamento para sua pesquisa pelo Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR), iniciativa de apoio a estudos sobre o continente que envolve o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), os ministérios da Defesa, do Meio Ambiente, das Relações Exteriores e da Ciência, Tecnologia e Inovação, além de empresas públicas e privadas.
No entanto, a viagem deve acontecer somente no último ano do projeto, que vai até 2016. O motivo é a temporária, falta de instalações adequadas para desenvolvimento das análises, já que no final de 2012 um incêndio destruiu a estação científica brasileira, que estava lá desde 1984. “A partir do próximo ano poderá ter um laboratório exclusivo para clima dentro da estação, que está sendo reconstruída, então, é a partir daí que a gente pensa em ir. No cronograma, deixamos a coleta de dados in loco como a última parte”, diz.
O trabalho do meteorologista quer descobrir as relações entre o gelo que se forma sobre o mar da Antártica e o clima na parte sul da América do Sul. Entender as conexões entre os elementos ajudaria a prever eventos como chuvas mais violentas ou temperaturas acima da média no Centro-Sul do Brasil, e até pode servir como ponto de partida para, por exemplo, análises sobre a vida de animais marinhos.
“Muita coisa está em volta. Nosso estudo não aborda tudo, mas ele abre o leque para outras áreas”, explica David Mendes. “Nosso intuito é dar o pontapé para várias outras pesquisas relacionadas, fornecer subsídios para alguém que vincule, quem sabe, clima com agricultura ou com saúde pública, para que tenha base em informações científicas”.
Gelo
A água do oceano congelada nas bordas do continente forma o que os estudiosos chamam de gelo marinho. A extensão do gelo na Antártica varia aos poucos, de acordo com a temperatura da Terra, e avança até seu ponto máximo durante o inverno, no Hemisfério Sul e recua até o mínimo durante o verão. Os meteorologistas sabem que esse movimento influencia na passagem de frentes frias em direção à América do Sul e, também, na ocorrência chuvas na região. Determinar a relevância dessa influência é o que pretende o trabalho do professor da UFRN.
“O que tá acontecendo com esse gelo? No futuro, ele vai aumentar ou diminuir? Se aumentar, trará benefícios ou malefícios? E se diminuir?”, cita David Mendes, sobre alguma das questões que propõe investigar.
A análise é feita com o auxílio de sofisticados, programas de computador que os cientistas denominam “modelos”. Informações como vento, pressão, umidade e temperatura são coletadas em todo o mundo através de satélites espaciais e por meio de estações meteorológicas espalhadas pelo planeta. Reunidos, os dados colhidos alimentam os modelos, que, após meses de processamento em máquinas de alto desempenho, descrevem o comportamento do clima no futuro.
No caso do estudo conduzido na UFRN, a ideia é prever o cenário para os próximos cem anos. Os resultados deverão produzir por volta de vinte terabytes de informação, o equivalente a cem vezes a capacidade de armazenamento de um computador pessoal comum.
David explica que o desequilíbrio histórico entre os hemisférios Sul e Norte, no que diz respeito à quantidade de recursos aplicados em pesquisas, fez com que o número de investigações meteorológicas sobre a região norte do planeta superasse em muito o de trabalhos sobre a parte sul. O cenário contribui para a relevância de projetos como o seu.
“Agora estamos tentando tomar as rédeas do conhecimento sobre o Hemisfério Sul, não só brasileiros, mas argentinos, australianos e neo-zelandeses”, conta. “O Brasil está na vanguarda e tem hoje nível mundial. Estamos pulando a barreira de deixar tudo concentrado nos grandes centros e conseguindo fazer ciência de boa qualidade em uma universidade como a UFRN”, analisa o docente.
Sol
Enquanto David Mendes analisa o gelo sobre o mar da Antártica, José Henrique Fernandez mira em objetivos mais altos. Não em sentido figurado, mas do modo literal: a alta atmosfera terrestre é a matéria de estudo do físico.
Mais especificamente, José Henrique investiga as perturbações causadas nos últimos níveis da atmosfera da Terra por prótons e elétrons expelidos pelo Sol, grupo de partículas que os cientistas chamam de ventos solares.
Apesar de o tema parecer desprendido da nossa realidade aqui na superfície, melhorar a compreensão do espaço vizinho ao planeta colabora para, entre outras coisas, aperfeiçoar o funcionamento de redes de telecomunicações e para garantir precisão a sistemas de posicionamento global – hoje largamente utilizados tanto em sofisticados instrumentos de aviação quanto em automóveis particulares de passeio.
O docente da ECT esclarece que, quando os ventos solares atingem a Terra – já que nem toda matéria ejetada pelo Sol chega ao planeta –, é nos polos que as partículas penetram em direção à superfície. Essa característica faz com que seja a Antártica o ambiente ideal no Hemisfério Sul para conduzir pesquisas sobre o tema.
A análise é feita com o auxílio de instrumentos receptores de ondas de rádio, que são refletidas na camada da atmosfera denominada ionosfera. Caso haja qualquer mudança imprevista na camada, provocada por precipitações de partículas vindas do Sol, o sinal que alcança os receptores também apresentará alterações. Uma vez conhecidas as deformações do sinal, torna-se possível corrigi-las.
“Nos EUA há um sistema para pouso de aviões que é totalmente automático. Ele precisa saber a posição da aeronave com muita precisão em relação ao solo e isso é feito por satélites”, conta o cientista, para exemplificar possíveis consequências dos efeitos de ventos solares. “O sinal vem do satélite até o avião, passando pela ionosfera. Se ela estiver perturbada, o sinal vai ser perturbado e o avião cai. Para poder confiar cem porcento em um sistema desse tipo, você tem de mapear muito bem a ionosfera e saber as condições dela em tempo real”, analisa.
Outra aplicação do conhecimento mais apurado da alta atmosfera é antecipar fenômenos solares, que possam ter repercussões na Terra, para então prevenir seus efeitos. “A ionosfera funciona também como uma grande antena, e a previsão da chegada de ventos solares pode evitar a perda de milhões de dólares em investimentos em satélites, por exemplo”, afirma José Henrique Fernandez.
As investigações do espaço próximo ao planeta permitem ainda diagnosticar os efeitos na atmosfera do crescimento da emissão de gases provocada pela atividade humana nas últimas décadas. “A Terra passa por ciclos de variações climáticas naturais, mas temos interferido bastante nesse equilíbrio”, aponta o físico. “Como bater o martelo sobre o que de fato é gerado pelo homem e o que é natural? A gente precisa saber como isso se processa, e muitos dos indicadores a gente vê da Antártica”, diz.
O trabalho de José Henrique começou a ser desenvolvido antes de sua chegada à UFRN, e formalmente vincula-se a um centro de astronomia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo. O projeto também recebe recursos pelo Programa Antártico Brasileiro.
De sua pequena e impessoal sala no último andar da Escola de Ciências e Tecnologia, o professor já considera sua décima sexta viagem ao Continente Branco. “Neste momento, existem instalações provisórias da estação brasileira, mas que não suportam computadores e tudo o que tinha antes. Em breve teremos geradores, então até o final do ano o pessoal da Física deve começar voltar”, conjetura. “No começo, a gente vai mandar técnicos e engenheiros para reconstruir a estrutura. Depois, provavelmente eu volto”.
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