Notícia publicada no caderno Cultura do Novo Jornal:
Quase de frente à Praça André de Albuquerque, na Cidade Alta, a figura esculpida de Câmara Cascudo permanece imóvel em cima de uma mão à espera de visitantes. O lugar que está logo atrás desta imagem, até então, abriga reminiscências de sua trajetória como pesquisador da cultura popular: o Memorial Câmara Cascudo. No entanto, pouco atrativo e praticamente sem artefato interessante, o casarão continua existindo apenas como mais um prédio histórico do centro da cidade, que recebe uma ou outra visita de vez em quando.
Na última sexta-feira, porém, aquela mesma figura de Cascudo viu passar, em direção ao casarão, uma visita ilustre, uma das mentes mais respeitadas quando o assunto é museu. Marcello Dantas foi o responsável por transformar em 2006 o Museu da Língua Portuguesa, na Estação da Luz, em São Paulo, em uma referência para a América Latina e agora, quem sabe, pode fazer algo semelhante, à altura do célebre intelectual potiguar, caso as negociações com a Fundação José Augusto prosperem.
Caso seja contratado, a missão de Dantas será o de elaborar um projeto para modernizar o Memorial Câmara Cascudo, destinado a divulgar a obra do folclorista que se dizia um provinciano incurável e, por isso, jamais deixou Natal e o Rio Grande do Norte. Detalhes deste projeto, porém, ele não revela, até porque ainda está em fase inicial de conversas e consultas.
“Deu para sentir o cheiro. Ainda tá tudo muito fresco, mas é evidente que existe uma história para ser contada ali. Uma história que vai além do homem, porque o Instituto Ludovicus já faz isso muito bem. A gente tem que representar naquele espaço justamente o que ele tentou contar: todos os bichos, as comidas, tudo da identidade do Rio Grande do Norte”, explicou o museólogo.
Aliás, qual é verdadeiramente o papel de um museólogo? De acordo com Marcello Dantas, é o de fazer surgir, aos nossos olhos, “uma história que está dentro de nós”, desenvolvendo, acima de tudo, uma narrativa coerente com a obra que pretende interpretar. “O museólogo tem a liberdade de ser tão livre quanto o autor, mas sendo fiel a ele”, define pontuando também que o Memorial tem tudo para se tornar um espaço contemporâneo.
“Até então tinha lido Câmara Cascudo muito por cima, tinha na cabeça somente o grande personagem que foi, mas para começar a trabalhar vou me aprofundar mais na obra”, promete sobre o trabalho que ainda não está completamente fechado e vai depender da nova emenda para a cultura, no valor de R$ 20 milhões, empenhada no Orçamento Geral do Estado. Com este valor, a FJA espera promover a revitalização e reforma da Fortaleza dos Reis Magos, do Palácio Potengi (Pinacoteca do Estado) e do Memorial Câmara Cascudo.
Valorizar a identidade
Para Dantas, o conceito mais adequando para museu seria, na verdade, o de um espaço para se sentir valorizado e de conexão com a identidade de cada um. “Ele perdeu conexão quando passou a ser depositário de coisas velhas, quando na verdade é um lugar para você se sentir valorizado e para se conectar com a sua identidade”, avalia.
Ainda de acordo com o designer formado em cinema e televisão pela “New York University”, com pós graduação em telecomunicações interativas na mesma universidade, é primordial que o museu dialogue diretamente com os jovens e crianças e, para isso o audiovisual pode ser um meio.
“A linguagem audiovisual é muito importante porque o brasileiro é alfabetizado com este recurso, mas ela é só um meio. A imersão e a interatividade são pontos fundamentais”, garante o museólogo, que tem como principal inspiração para seu trabalho o Museu do Holocausto em Washington e o Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona.
“O Museu do Holocausto já tem mais de 20 anos e é fundamental para entender a história… De um modo geral os dois comprovam que é possível demonstrar a história através de uma vivência”, diz. “Hoje, o Brasil vive um movimento impressionante e uma demanda assustadora. O tempo todo tem gente inquieta fazendo os museus renascerem no horizonte das pessoas. É uma coisa nova que está povoando o Brasil”, observa.
Tendo no currículo ainda outros projetos de peso, como o Museu do Caribe, na Colômbia, o Museu das Telecomunicações, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, onde ele também assina o Museu das Minas e do Metal, Dantas é lembrado principalmente pelo trabalho no Museu da Língua Portuguesa, localizado na Estação da Luz, em São Paulo, inaugurado em 2006. Na época, seu maior desafio era criar um espaço “entendível”.
“O maior desafio foi criar um museu entendível. Como é que você faz uma coisa que não tem referência, contar a história do que nos faz ser quem a gente é? Esse foi o principal desafio, além da própria estrutura do prédio, que era também desafiadora. Várias coisas que a gente usou ali eram ‘a versão número 1’ daquela coisa. Queríamos ver até onde a tecnologia poderia nos levar”, comenta sobre o projeto.
Audiovisual
Marcello iniciou sua carreira em museus ao mesmo tempo em que se projetava também no audiovisual. São mais de 30 filmes até agora. No seu currículo incluem-se prêmios de melhor documentário na “Bienalle Internationale du Film Sur L’Art” do Centro Georges Pompidou em Paris, no “FestRio”, no “International Film & TV Festival of New York” e o prestigioso “ID Design Award”, da Business Week.
“Migrar do cinema para os museus foi muito natural porque as duas atividades começaram ao mesmo tempo. Antigamente não existia essa demanda tão grande de museus, a mudança mesmo acho que só aconteceu nos anos 2000, quando parei de fazer documentários de TV”, esclarece. “Eu estudei História antes de estudar televisão, então minha paixão de contar histórias começa daí. O documentário é uma forma de contar histórias reais e o museu também”, explica.
O mais prazeroso em sua rotina de trabalho por museus, ele garante que é cara da garotada logo depois de uma visita. “O primeiro momento também, esse contato inicial com a pesquisa é muito bom, exatamente o que fiz agora aqui em Natal. É muito interessante descobrir. Mas, o mais prazeroso mesmo é ver a cara da garotada que mexe com a coisa; e a turma se entretendo e rendendo histórias porque o museu na verdade é um espelho da sociedade.”, conclui.
Logo após a visita, Marcello Dantas se reuniu na Fundação José Augusto por mais de duas horas com a secretária extraordinária de Cultura, Isaura Rosado e membros do Instituto Ludovicus para definir detalhes do projeto. “Ele é o idealizador de um dos museus mais importantes desse país, não dá pra negar a importância dessa visita”, considera a diretora do Memorial Câmara Cascudo e neta do célebre historiador potiguar, Daliana Cascudo.
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